sexta-feira, 20 de novembro de 2009

IN DUBIO PRO REO

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Durante a maior parte do tempo de minha vida de magistrado atuei no Cível. Por isto quando me transferi para uma Câmara Criminal fui assaltado por uma certa perplexidade em razão das variantes interpretativas da matéria.

Nas minhas pesquisas encontrei decisões divergentes e conflitantes, mas isto ocorre também no Cível. Não deixa de ser normal em face da dinamicidade do Direito. O que mais me impressionou, no Crime, foi a sensação de que, muita vez, o intérprete faz exercícios de deliberado contorcionismo mental visando a defesa de um ponto de vista que sempre busca beneficiar o infrator.

Não estou falando de parcialidade, mas de um enfoque especial, com certeza inspirado nos princípios humanísticos que qualificam o juiz criminal diante de situações em que se vê de mãos atadas, presciente de que a decisão mais justa não é aquela preconizada na Lei. Mas em interpretação legal, criado um ponto de exceção, ele logo se expande e passa a ser aplicado indiscriminadamente em casos não excepcionais.

Culpa-se a Sociedade, o meio, o Governo, a estrutura sócio-econômica do país, como se o crime fosse um privilégio nosso e ausente nos países desenvolvidos. Algumas interpretações parecem buscar convencer que todos os réus devam ser absolvidos por inexigibilidade de outra conduta e a sociedade, esta sim, punida. Como se não bastasse a penalização que sofre exatamente pela incidência criminosa.

Também entendo que a crise sócio-econômica e o desemprego incentivam a prática de delitos, principalmente contra o patrimônio. Também entendo que estamos lutando contra conseqüências e esquecendo causas. Estas é que deveriam ser atacadas visando a prevenção dos crimes. A repressão, quando ocorre, o mal já aconteceu.

Mas não há como o Judiciário intervir administrativamente no Estado e resolver esse quadro. As decisões judiciais são remédio servido a conta-gotas e só resolve, ou tenta resolver, os problemas restritos e limitados à amplitude do processo: a realidade dos réus e das vítimas, sob a ótica do Estado e do interesse público. Isto é insuficiente para sanar problemas em larga escala. E há crimes – contra os costumes, por exemplo – cuja gênese repousa na própria natureza humana e esta é esquecida.

Quando se defende um criminoso e se culpa a sociedade esquece-se que o homem é dotado de mecanismos de defesa lícitos. Num jogo de “faz-de-conta”, se quer convencer que todos os réus são ingênuos, até bondosos, sem capacidade de reação, de discernimento e de tomar conduta diversa perante os fatos da vida. Parece, enfim, que são incapazes para a vida normal e precisam ser sempre tutelados.

A interpretação que encontrei muitas vezes nega aos réus sua própria natureza humana, como se um determinismo psicossocial os impelisse à prática delituosa e isto fosse justificável porque não têm condições de distinguir o certo do errado e o bem do mal – eterna luta do Homem desde tempos imemoriais.

Absolver indistintamente, segundo tais interpretações, parece a solução para estes casos. Na verdade é uma farsa: a folha corrida do criminoso fica em branco, mas a nódoa do crime ninguém apaga.

Nem do seio da sociedade nem da mente da vítima traumatizada.
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Publicado no Jus Sperniandi, do autor, no Uol,
em 02/08/2004.
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2 comentários:

  1. Pitacos transcritos do post original:

    [Carlos Damião] [carlosdamiao@brturbo.com] [http://carlosdamiao.zip.net]
    Prezado Ilton Não pedi dispensa, pelo contrário, fazia questão de ser sorteado, torcia pra isso. É uma experiência que recomendo a todos os amigos, não só pelo aspecto da valorização da cidadania, mas também porque a gente aprende muito sobre o ser humano. [Sobre o comentário em relação ao juiz: o discurso que ele fez foi após a sentença. Esse magistrado, dr. Paulo Roberto - não lembro o sobrenome - é um dos melhores do ramo criminal aqui em SC]. Outra coisa quanto ao tribunal do júri: o lanche que servem é muito bom. Compensa as horas de inatividade naquelas cadeiras desconfortáveis. [Isso é brincadeira, claro]. Abraço

    03/08/2004 21:15

    RESPOSTA:
    Lanche? Aqui, quando fui juiz criminal no interior, eu iniciava a sessão às 9,00 horas para justificar um belo churrasco ao meio-dia...

    [Carlos Henrique Delandrea] [ch.delandrea@terra.com.br]
    Muitas vezes em nosso labutar diário temos a necessidade de realizar reflexoes para verificarmos se realmente estamos no caminho certo. Após a transição do regime militar e de suas atrocidades, houve a necessidade de uma nova Constituição que viesse amenizar o sentimento de impotência dos cidadãos frente ao Estado. Desta forma, do advento constitucional até hoje, princípios constitucional vem influencian na atividade criminosa. Ninguém poderá ser considerado culpado até o transito em julgado de sentença penal condenatória, devido processo legal, contraditório e ampla defesa, impossibilidade de provas obtidas por meio ilícitos (gravações telefônicas sem autorização judicial), e outros expresso no art 5 da CF/88, fazem com que a todo acusado seja prezumida sua inocência. Desta forma, deve o processo penal realmente buscar a verdade real, provar que determinado agente cometeu uma conduta considerada ilícita. Dependemos de prova. Na dúvida, vale mais um criminoso solto do um inocente preso

    03/08/2004 20:43

    RESPOSTA:
    Chico, Chico! Tua ainda vais acabar Juiz de Direito...

    [Glauco Damas]
    Vou me expressar melhor... É claro que os cursos universitários nunca ensinam tudo. A prática é a grande escola. Além de Direito, fiz Jornalismo. Aprendi muito mais em 6 meses como produtor de um telejornal! Eu quis dizer, caro Ilton, que a grande maioria das faculdades de Direito está precária, sem reais preocupações com a qualidade do ensino. A proliferação dessas faculdades é um mero caça-níqueis. Os alunos saem atordoados, perdidos como cachorro em mudança. Ainda bem que aqui em SP o presidente da OAB está preocupado com isso, e tem tomado boas decisões. Não sei como está no resto do país.

    03/08/2004 20:29

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  2. Pitacos transcritos do original:

    [Carlos Damião]
    [Continuando]. Disse que conseguiu amenizar, graças ao trabalho dos advogados da defesa [dativos] e da promotora. Mas a família da garota contratou advogados para atuarem na acusação. O grande circo foi entre os advogados auxiliares e a promotora. Porque ela pediu a desqualificação (de tentativa de homicídio para lesão corporal grave, acho que é isso), baseada no bilhete que a moça deixou na cadeia para o agressor, sugerindo que eles "passassem uma borracha em tudo". Ao final, o que valeu foi o discurso do juiz, em defesa da Justiça e contra os dois advogados da acusação, que, diante de um resultado previsível (a derrota), retiraram-se do plenário. Fiquei comovido com as palavras do juiz, porque senti nele uma sinceridade extraordinária. Grande abraço, Carlos Damião

    03/08/2004 02:18

    RESPOSTA:
    Tribunal do Júri
    Damião: Apesar de toda a teatralidade - que não é do processo, mas dos que nele atuam - eu entendo interessante a manutenção do Tribunal do Júri em nosso sistema penal. Às vezes, por ele, se faz justiça por linhas tortas. Não sei o que ocorreu, no final, no júri que vc participou. Mas se o Juiz fez comentários que possam ter influenciado os jurados, ele certamente foi anulado no TJ. Mas, por favor, não peça dispensa da relação de jurados. É de gente esclarecida que o Tribunal do Júri necessita. Abraços.

    [Carlos Damião] [carlosdamiao@brturbo.com] [http://carlosdamiao.zip.net]
    Olá Ilton, tenho saboreado diariamente teus comentários diretos da Praia do Grant. Não imaginas a inveja (positiva) que sinto, por não poder, este ano, tirar férias. Culpa do Lula? Pois é, sou microempresário e andei me perdendo durante os primeiros meses de 2004, por conta da economia desequilibrada, coisa e tal. Uma hora conversamos sobre isso. Queria comentar sobre o post de hoje, porque sou membro do tribunal do júri de Florianópolis, andei sendo chamado três ou quatro vezes em 2003. Num dos julgamentos, fiquei de cabelos em pé: não há romance, filme, documentário, reportagem, conto, o que seja, capaz de sintetizar aquele clima de paixão, de baixaria, de podridão. Era um caso de tentativa de homicídio - o ex- voltou à casa da mulher e deu um tiro no rosto dela... QUe coisa louca. Ele conseguiu amenizar graças a um erro da ex-companheira: ela foi visitá-lo na cadeia e cometeu a imprudência de deixar um bilhete. (SEGUE NO PRÓXIMO COMENTÁRIO).

    03/08/2004 02:13

    [Glauco Damas]
    Em outros posts eu escrevi muito sobre a violência que impera neste país. Acabei me exaltando... (Por favor, não me expulsem deste blog!) O assunto me incomoda MUITO. Se a violência continuar piorando, nem a importação de super-heróis americanos nos ajudará. (Homem-Aranha, Superman, Batman...)

    03/08/2004 01:51

    RESPOSTA:
    Super- Heróis
    Sou mais fã dos nossos super-heróis latinos. O Chapolin Colorado, por exemplo, e sua astúcia...

    [Glauco Damas]
    Sugestões de "pauta" para o seu blog: (1) A qualidade do ensino jurídico no Brasil; a proliferação das faculdades de Direito. (2) Os exames da OAB. // São assuntos relacionados. As provas da OAB são assunto do momento. Uns criticam, dizem que a OAB está exagerando na dificuldade; outros dizem que o erro está nos alunos, que saem de cursos ruins ainda muito longe de apresentarem um mínimo de conhecimentos (concordo com esta posição; fiz Direito e sei como é). No Estado de SP, o índice de reprovação na OAB é de 89%!!! Seria interessante saber como está no RS.

    03/08/2004 01:36
    RESPOSTA:
    CURSOS DE DIREITO
    Vou anotar na agenda. Apenas adiantando: eu aprendi muito pouco na faculdade de Direito. Trabalhara três anos, antes, num Fórum, e lá aprendi muito mais do que no curso regular de cinco anos. E, depois de formado, é claro, na pesquisa e na luta.

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