Em 07/10/2008 – portanto há mais de onze anos – publiquei
no blog com o mesmo nome que mantinha no UOL o texto abaixo, que tem tudo a ver
com o catastrófico julgamento proferido em 07/10/2019 pelo STF. Pretendo voltar
ao assunto mais tarde, mas por ora, fica o texto como introdução:
O instituto jurídico da presunção de
inocência não é uma dádiva dos deuses ou demiurgos de conhecimentos
transcendentes ou superiores. É uma criação de juristas de carne e osso, ainda
que detentores de conhecimentos jurídicos diferenciados, que deveria ser
mitigada na gênese dogmática com que se revestiu quando implantada no Brasil.
Afinal, se o homem a criou, pode, também, modificá-la sem desfigurá-la.
Sempre usada com desenvoltura em ações
criminais, porque gravada na Constituição, merece considerações que, sabe-se,
serão criticadas por puristas da interpretação do Direito.
Não se nega força filosófica e jurídica
a essa expressão idiomática que, todavia, não encerra princípios tão absolutos
de certeza que possam afastar exceções ou impor-se incondicionalmente. Se assim
fosse não subsistiria, sob nenhum fundamento, a prisão cautelar: o agente só
poderia ser preso após sacramentada, instância por instância, uma condenação.
Quando alguém comete um delito e sofre
inquérito que justifique denúncia do Ministério Público – obrigado a examinar
os autos com cautela e percuciência – a presunção deixa de ser absoluta. Se é
certo que cabe ao Estado provar a existência do crime e a culpa do réu, já pesa
sobre este, no mínimo, a suspeita da prática de ato ilícito, porque fatos houve
a provocar a investigação policial e, principalmente, a denúncia.
Se condenado, a sentença, mesmo sujeita
a recurso, mitiga ainda mais essa presunção. Pode-se pensar, inclusive, em
presunção de culpa. A condenação por magistrado togado, de saber jurídico
indiscutível – um juiz não é nomeado por critérios políticos, mas através de
concurso público com provas específicas e rígidas de conhecimentos gerais e
jurídicos –, impõe reconhecer que ele examinou o processo e se convenceu da
configuração do tipo, da antijuridicidade da conduta e da culpa do agente, e
que por isto, condenou de acordo com a prova, com a lei e com seu livre
convencimento.
Desprezar esta realidade equivale a
considerar aprioristicamente sem efeito a decisão de primeiro grau e restringir
a autoridade jurisdicional dos juízes. É relegar a importância da sentença a um
segundo plano. É desconfiar do próprio juiz. Mais racional seria transformar a
primeira instância em mero juizado de instrução. Finda esta, far-se-ia a
remessa, pura e simples, dos autos ao Tribunal, que proferiria a decisão.
O juiz contata diretamente com os
envolvidos, colhe a prova, olha o réu de frente e tem condições objetivas de
apreciar os fatos quase que os tateando. Em grau de recurso os desembargadores
examinam a letra fria do processo, não têm esse contato e tendem a substituir
as impressões decorrentes pela interpretação jurídica pura e simples da prova.
Atualmente, na teoria, recursos ao STJ
e/ou ao STF não têm efeito suspensivo, isto é, não suspendem o acórdão que
confirmou a sentença: o condenado com decisão confirmada em segundo grau teria,
em princípio, que se recolher à prisão. Na prática não é o que ocorre. O STF,
por excesso de zelo, avoca um poder descomunal e parece ser o único dono da
verdade jurisdicional: distribui habeas corpus como se lhe coubesse
privativamente dar a primeira e a última palavra.
O dogma da presunção da inocência
absoluta precisa ser mitigado. A condenação de primeiro grau deve ser
considerada uma realidade jurídica forte e capaz de produzir efeitos além da
mera condenação virtual.
O sentenciado não é mais tão
presumivelmente inocente quanto a jurisprudência superior ordena que se aceite:
ele, agora, é um presumível culpado e o grau de presunção supera, em qualidade,
o da inocência pura e simples (desculpando-me com os colegas que vejam no que
digo uma heresia, coloco aqui um reverente salvo melhor juízo).
Não é jurisdicionalmente sadio que o
STF tenha o dom de estraçalhar provisoriamente decisões fundamentadas e
baseadas na prova das instâncias inferiores por força de um enunciado que se
impõe por seu dogmatismo artificial e não por sua afinação à realidade jurídica
do organismo social que sofre as consequências.
Fácil de mudar essa conjuntura? Não!
Extremamente difícil, se não impossível. Do STF não se espere nada. Os juristas
superiores, via de regra, gostam de criar dogmas para facilitar o mister de
lidar com o Direito. Preferem trilhar caminhos já traçados, mesmo que o
sacrifício seja suportado por outrem. No caso, a Sociedade como um todo.
Se mudança houver será com a
persistência implicante de juízes de primeiro grau que, também via de regra,
são quem promovem alterações e reestruturam conceitos. No Direito, como em
outras áreas do conhecimento humano, as mudanças se fazem sempre de baixo para
cima.
Acrescento, agora, que o
STF investiu-se de poderes tão intensos e arbitrários que, assegurados por uma
lei de abuso de autoridade, ela sim abusiva, castrou a salutar possibilidade de
mudanças de baixo para cima. E ai de nós!
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