A TESTEMUNHA EMBRIAGADA
Sempre preferi realizar audiências de manhã. Cabeça mais fresca, as perguntas fluíam mais aguçadas e as engrenagens cerebrais azeitadas permitiam captar eventuais contradições ou mentiras deslavadas mais facilmente.
Certa vez, em Espumoso, num processo crime, um jovem entrou na sala para depor e se jogou na cadeira. Esticou as pernas, deixou cair os braços, espreguiçou-se. Esperei que se compusesse e ele me olhou com os olhos vidrados, a boca com um meio sorriso, babando:
– O senhor está embriagado? – sempre tratei as testemunhas e os próprios réus de senhor ou senhora.
Eu perguntara o óbvio mas ele me olhou surpreso. Estava tão embriagado que certamente supôs que conseguira disfarçar a situação. Coçou a cabeça e quando lhe perguntei pela segunda fez, admitiu.
– O senhor não poderia vir prestar depoimento bêbado...
Então quis bancar o engraçadinho:
– Pois é, vizinho, o seguinte é isso: não tinha água em casa e escovei os dentes com cachaça. Como é pecado jogar cachaça fora aproveitei e tomei uns góls...
Tive ímpetos de subir na mesa, mas não havia o que dizer naquela hora, pois não surtiria o menor efeito. O seu nível de percepção estava completamente obscurecido.
É óbvio que inquirição estava prejudicada. A embriaguez retira o discernimento das pessoas e a imaginação criativa é açulada pelos chamados eflúvios etílicos. A credibilidade é espancada de relho e o depoimento seria nulo.
Dei voz de prisão à testemunha por infração ao artigo 62, da Lei de Contravenções Penais. Lavrei eu mesmo o Auto de Prisão em Flagrante e entreguei a Nota de Culpa. Em se tratando de delito afiançável, já um tanto condoído pela situação, resolvi fixar a fiança em valor baixo, pois se tratava de pessoa pobre.
Nunca considerei o fato de se ter dinheiro para comprar pinga como sinal ostensivo de riqueza. Os ricos compram uísque. Para isto lhe perguntei:
– Quanto dinheiro o senhor tem aí?
Ele abaixou a cabeça, me olhou enviesado e desconfiado, e despejou:
– Por quê? Já tá querendo meter a mão na minha grana também?
Foi a minha vez de baixar a cabeça, desanimado. Nem o defensor que o arrolara conseguiu convencê-lo a dizer quando dinheiro possuía, se é que tinha algum.
Fixei a fiança no mínimo possível. O advogado, Doutor Euclides Luis Marquese, foi quem acabou pagando.
Mas só à noitinha, passado o porre...
.Sempre preferi realizar audiências de manhã. Cabeça mais fresca, as perguntas fluíam mais aguçadas e as engrenagens cerebrais azeitadas permitiam captar eventuais contradições ou mentiras deslavadas mais facilmente.
Certa vez, em Espumoso, num processo crime, um jovem entrou na sala para depor e se jogou na cadeira. Esticou as pernas, deixou cair os braços, espreguiçou-se. Esperei que se compusesse e ele me olhou com os olhos vidrados, a boca com um meio sorriso, babando:
– O senhor está embriagado? – sempre tratei as testemunhas e os próprios réus de senhor ou senhora.
Eu perguntara o óbvio mas ele me olhou surpreso. Estava tão embriagado que certamente supôs que conseguira disfarçar a situação. Coçou a cabeça e quando lhe perguntei pela segunda fez, admitiu.
– O senhor não poderia vir prestar depoimento bêbado...
Então quis bancar o engraçadinho:
– Pois é, vizinho, o seguinte é isso: não tinha água em casa e escovei os dentes com cachaça. Como é pecado jogar cachaça fora aproveitei e tomei uns góls...
Tive ímpetos de subir na mesa, mas não havia o que dizer naquela hora, pois não surtiria o menor efeito. O seu nível de percepção estava completamente obscurecido.
É óbvio que inquirição estava prejudicada. A embriaguez retira o discernimento das pessoas e a imaginação criativa é açulada pelos chamados eflúvios etílicos. A credibilidade é espancada de relho e o depoimento seria nulo.
Dei voz de prisão à testemunha por infração ao artigo 62, da Lei de Contravenções Penais. Lavrei eu mesmo o Auto de Prisão em Flagrante e entreguei a Nota de Culpa. Em se tratando de delito afiançável, já um tanto condoído pela situação, resolvi fixar a fiança em valor baixo, pois se tratava de pessoa pobre.
Nunca considerei o fato de se ter dinheiro para comprar pinga como sinal ostensivo de riqueza. Os ricos compram uísque. Para isto lhe perguntei:
– Quanto dinheiro o senhor tem aí?
Ele abaixou a cabeça, me olhou enviesado e desconfiado, e despejou:
– Por quê? Já tá querendo meter a mão na minha grana também?
Foi a minha vez de baixar a cabeça, desanimado. Nem o defensor que o arrolara conseguiu convencê-lo a dizer quando dinheiro possuía, se é que tinha algum.
Fixei a fiança no mínimo possível. O advogado, Doutor Euclides Luis Marquese, foi quem acabou pagando.
Mas só à noitinha, passado o porre...
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Publicado no Jus Sperniandi, do autor, no Uol,
em 09/08/2004.
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Pitacos transcritos do original:
ResponderExcluir[Glauco Damas] [glauco@glaucodamas.com] [http://portugueshoje.blog.uol.com.br]
Ilton tem muito jeito para isso. As histórias curiosas... aliadas a um bom jeito de contar (como ele tem)... dão mesmo um bom livro.
10/08/2004 22:46
RESPOSTA:
RESPOSTA AO GLAUCO E AO DAMIÃO.
A idéia não é má. Até porque esta se tem revelado a melhor forma de se escrever um livro. É só ter um número razoável de textos, selecioná-los e publicá-los. Com a palavra o meu revisor... Mas surgem os casuísmos. Tenho, como disse no sábado, vários textos na fila. Mas sempre surge algum assunto do qual não vejo como escapar. Como o que acabei de postar, por exemplo, sobre o controle da imprensa.
[Carlos Damião] [carlosdamiao@brturbo.com] [http://carlosdamiao.zip.net]
Prezado Ilton Acho que um dia teremos um livro reunindo essas histórias saborosas, não é verdade? Muito boas essas crônicas! Parabéns.
10/08/2004 21:36