segunda-feira, 9 de novembro de 2009

UMA HISTÓRIA DE CORRUPÇÃO

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(Matéria de capa da revista ISTOÉ n.º 1811, de 23/06/1004).

Como um vice-governador ajuda um policial fantasma a se livrar da demissão. O policial é também membro de uma máfia que sonega milhões, adultera combustível e suborna fiscais da Receita, da ANP e policiais rodoviários. Tudo isso, pasmem, acobertado por um desembargador do TRF, que pede R$ 300 mil para inocentar o bando.

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Fui secretário de Escrivão, de Juiz, estudante de Direito, depois Advogado, Juiz de Direito, Juiz de Alçada e Desembargador (nessa ordem), num lapso de tempo de aproximadamente 33 anos.

Sempre achei estupidez uma parte ou seu advogado comprar um juiz, isto é, suborná-lo para julgar uma causa a seu favor. É que no Brasil vige o princípio da dupla jurisdição: tudo o que um juiz decidir pode ser modificado pelo Tribunal.

Nos tribunais, os julgamentos são colegiados. Não é um só desembargador que julga. São três: o relator que recebe o processo, analisa o recurso e a decisão, elabora seu voto e remete os autos ao revisor. Este reanalisa o feito e, se divergir, redige seu próprio voto, explanando suas razões. Se concordar, não necessita acrescer nada, embora possa fazê-lo. Cópia do voto e da divergência, se houver, vai ao terceiro membro da Câmara (vogal) que pode concordar com um ou com outro ou lançar sua própria divergência se os dois primeiros forem consonantes. Só então o feito vai a julgamento, que é público.

Para obter resultado positivo, o corruptor teria que comprar, além do juiz, pelo menos dois desembargadores. Mas há, ainda, a possibilidade de outro recurso (embargos infringentes) em caso de divergência e um grupo de Câmaras do tribunal, de no mínimo sete desembargadores (aqui no Rio Grande do Sul), decidirá a questão. Por segurança dever-se-ia então comprar três desembargadores. Mas ainda assim poderá admitir-se recurso especial ou extraordinário aos tribunais superiores, o que tornaria necessário comprar ministros desses tribunais para o alcance integral do objetivo.

Sempre enxerguei desta maneira e a estupidez referida residiria na crença de ser impossível subornar, além do juiz, vários desembargadores. Comprar um juiz, é uma coisa. Mas comprar um juiz e dois ou, para maior segurança, três desembargadores, é outra, completamente diversa, imprudente, cara e perigosa.

Alguma coisa mudou e minha crença está ultrapassada. Houve um aumento quantitativo e qualitativo de causas e o elevado valor dos interesses muitas vezes em jogo permite uma corrupção em larga escala, embora – devemos reconhecer – isto seja raro e difícil de ocorrer.

Por detrás disto, obviamente, está a morosidade da Justiça, insuflada pelo aumento geometricamente quantitativo do número de ações. São milhões de processos que tramitam em nossos foros e os juízes não têm como julgá-los com a celeridade necessária.

Criaram-se mecanismos visando agilizar a Justiça, e um dos mais importantes foi o da “tutela antecipada”, introduzida no sistema processual civil em 1994: se o juiz, ao analisar a prova do autor, ficar convencido de que este tem razão poderá entregar-lhe, antecipadamente, o resultado positivo, ainda que depois, no final, possa mudar seu entendimento e julgar em sentido contrário.

Daí se conclui que se o Judiciário fosse célere as ações seriam julgadas em pouco tempo e não haveria necessidade – como não havia anteriormente – dessa medida, que é artificial e de exceção processual. A tutela antecipada só foi instituída porque o julgamento final de um processo é geralmente muito demorado.

Mas além da tutela antecipada há a possibilidade de o autor valer-se, sem a ouvida da parte contrária, da famigerada “liminar”, que lhe assegura o resultado da ação, ainda que também provisoriamente.

As liminares são utilizadas em larga escala e o afrouxamento no exame de seu cabimento resultou no que se denomina de “indústria de liminares”, já que são requeridas – bem ou mal – praticamente em todas as ações.

Deferida a liminar, ou a tutela antecipada, invade o espírito do julgador a sensação de justiça feita e, na maioria das vezes, tais processos são, não esquecidos, mas colocados num segundo plano de prioridade, porque tem o juiz que se ocupar de outros processos, e mais outros, apreciar outros pedidos de liminares ou de tutela antecipada, pouco tempo remanescendo para enfrentar a ação provisoriamente decidida e definir o mérito.

Então o provisório, que se defere sem o estudo mais aprofundado e acurado exigido para a decisão final e sem a totalidade das provas no processo, se transforma em definitivo...

Se os fundamentos da decisão provisória são, também, provisórios fica mais fácil corromper. O juiz mal intencionado vai encontrar justificativa para sua decisão, ainda que no final possa desdizer o que disse e motivar com novos argumentos baseados nos elementos de prova trazidos ao processo.

Não sei de casos concretos a não ser os trazidos pela imprensa, mas é forçoso reconhecer que a provisoriedade permite que se mantenha uma decisão, ainda que injusta, quase que indefinidamente. A demora no julgamento final propicia vantagens enormes ao beneficiado, mesmo que lá longe no tempo, no final, ela possa ser modificada. Mas então pode não surtir mais efeitos ou ter produzido prejuízos irrecuperáveis ao réu.

Justiça tardia é sinônimo de Injustiça.


Publicada originalmente em blog com o mesmo nome, no Uol,
em 21/06/2004.
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